O melhor livro que eu quis não ter lido: como uma história “sem história” pode mudar uma vida. - via Literatourtura

Cândido Portinari -  Retirantes - www.galerialagiocondabrasil.blogspot.com (1)

Essa é a história de como um livro do qual me arrependi de ler mudou bastante o curso da minha vida.
Eu tinha 12 anos, acho, quando minha mãe, que até hoje dá aulas, chegou em casa com o livro, me estendeu e disse “Os professores todos ganharam. É um jogo.” A maior parte da capa era tomada por uma reprodução do quadro Retirantes, de Candido Portinari. Um velho, cujo rosto partido me fazia pensar em terra esturricada, segurando algo que parecia a foice da morte, me intimidou. Me esforcei para continuar com a cabeça abaixada, encarando o livro, para que minha mãe não visse minha expressão de completo desagrado, focada naquele ser mais à direita da ilustração, pois conseguia ver ali uma criança aproximadamente da minha idade, o que gerava alguma identificação. E aos pés do serzinho, vinha escrito RPG para iniciantes. Eu já conhecia aquela sigla, embora não tivesse ideia do que as letras significassem, e diante da imagem chocante, eu não me importava realmente. Não me julgue mal por minha reação. Eu era uma criança e minha mãe normalmente só me estendia coisas bonitas, não feias e tristes.
O livro passou alguns dias sobre uma pilha de revistas que havia no quarto de minha mãe, e teria ficado lá se ela não tivesse me perguntado se eu o lera. Ela sempre me incentivava a ler, bem melhor do que minha escola fazia. Com nove anos, deixei uma das professoras desconfortável por já ter lido Jorge Amado, ao contrário dela. Isso começou quando, antes de dormir, minha mãe lia “O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá” para mim, ou poemas de Cecilia Meireles, ou algum outro livro que eu achasse na biblioteca da escola e cuja capa fosse bonitinha. Eu jamais pegaria um livro que tivesseRetirantes estampado na biblioteca. Mas era minha mãe quem estava me pedindo para ler, então, eu teria que ler. Como eu poderia olhar para minha mãe e dizer a ela que não ia ler o livro?
Mas aquele livro, ah, aquele livro não era para ser lido.
O livro começa com as instruções de jogo. Cada jogador seria um dos 6 protagonistas da história, e diz que apesar de cada jogador representar seu personagem, todos ficam sentados juntos, “Ninguém sai por aí falando e fazendo coisas estranhas.”, diziam as instruções. Hoje em dia, eu acho bem mais legal sair por ai falando e fazendo coisas bem mais estranhas do que aqueles personagens seriam capazes, mas isso é assunto para outro momento.
A história gira em torno do roubo do quadro Retirantes, sendo que as telas Criança Morta e Enterro na Rede, que juntas formam a série de quadros também chamada de Retirantes, todas de Portinari, também haviam sido roubadas semanas antes. Os seis protagonistas tem seus motivos para encontrar o ladrão, sendo eles mesmos suspeitos do roubo. Se você alguma vez já jogou Cluedo, sabe o que é estar no papel de detetive e suspeito ao mesmo tempo. A investigação passa por locais que marcaram a vida de Portinari, como a galeria de arte em Paris, onde o pintor fez sua primeira exposição na Europa, a sede do Partido Comunista Brasileiro, pelo qual Portinari foi candidato, e pela sede da ONU, em NY, onde se encontram os painéis Guerra e Paz. Nesses locais se consegue as pistas para encontrar as obras de arte. Entender a obra de Portinari, em particular a serie de quadros Retirantes, é essencial para se desvendar o mistério. Uma das cenas mais interessantes e tocantes do jogo/história se passa na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde Portinari estudou. Um professor de artes pede aos protagonistas que desenhem, cada um, uma recordação, a lembrança mais vivida de suas infâncias, e as usa para explicar que a marca da obra de Portinari são suas raízes e as lembranças da infância.
Quando terminei de ler tudo, me senti roubada. Magoada. Eu não queria ler o livro, pois era orgulhosa demais para escolher uma capa com figuras tão cadavéricas para ler. Mas esse mesmo orgulho não me permitiria dizer à minha mãe que não leria qualquer coisa. Então o li, e o livro me roubou o prazer de viver aquela aventura digna daquela que na época era e ainda é a minha heroína, Carmen Sandiego, viajando pelo mundo e pesquisando fatos para se desvendar o mistério do roubo. Fui privada de pensar no que fazer, com quem falar e como investigar, em procurar bases para decidir como minha personagem reagiria ao roubo, ao encontro com o ladrão e ao achar as telas, pesquisar sobre os locais que visitaria atrás da melhor forma de agir. Eu não poderia me orgulhar de vencer, afinal, eu agora sabia como tudo aquilo acabava, como seria se tivesse lido qualquer outro livro. Não que eu não gostasse das aventuras vividas pelos protagonistas de outros livros, mas aquele em particular me prometeu deixar que eu fosse parte daquela história, que eu escolhesse os caminhos. E agora, eu sabia todos os caminhos e onde estes levavam.
Claro, esse sentimento durou quase nada, mas nem por isso deve ser ignorado, pois é esse sentimento de curta duração que nos leva à conclusão dessa história.
Fora informações sobre um dos mais admiráveis pintores brasileiros, aquele que mais alcançou repercussão fora do Brasil, as coisas mais importantes que eu aprendi com o livro foram sobre mim mesma. Sobre minha reação ao ver o quadro na capa. Portinari esperava que eu me chocasse com o velho e que me identificasse com a criança, assim como outras pessoas se identificariam com algum dos outros membros da família. Ele quis me lembrar de que, apesar de minha mãe normalmente me estender coisas bonitas, havia outras mães que sequer tinham algo para estender às suas crias. Fez-me saber que essa era uma realidade, ainda que retratada tortamente, que poderia ser a minha. Ele queria despertar o interesse da elite nessa realidade que era evitada, como eu evitaria um livro com aquela capa, assim como ele veio a se interessar por essas pessoas que eram parte dele mesmo, ao ponto de tentar governar em nome destas, enquanto vivia em Paris. Ah, tenho tão boas lembranças de Paris.
Tentei, da minha maneira, fazer algo semelhante agora. O titulo do texto é questionável, e minha atitude perante o livro é muito questionável, sei disso. Se tudo aconteceu como eu esperava, você me rejeitou no principio da história, como eu rejeitei o livro em principio. Então vem o conteúdo frio, as reais informações sobre o livro Mini GURPS: O Resgate de “Retirantes”, de Carlos Eduardo Lourenço, para despertar algum interesse real no texto e dar sentido à sua existência, e, por fim, toda uma questão mais emocional, a lembrança da infância. RPG tem dessas coisas. A história muitas vezes vem pronta na cabeça do mestre, mas a parte emocionante que nós sentimos é nossa. Quando falo desse assunto, não tem como não ser pessoal. Meu arrependimento sobre ter lido o livro, passou. Eu nunca cheguei a realmente jogar essa história, mas foi meu primeiro contato significativo com RPG. Só posso dizer que ter tido esse contato fez uma enorme diferença na minha vida.
Revisado por Felipe Rocha 


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